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O PROLETARIADO DO COMERCIO E DO ESTADO E O TRABALHO PRODUTIVO *


















O. Beluche

Para Marx, o operário comercial é um operário assalariado como outro qualquer. Em primeiro lugar, porque seu trabalho é comprado pelo capital variável do comerciante e não pelo dinheiro gasto como renda, o que quer dizer que não se compra simplesmente para o serviço privado de quem o adquire, mas com fins de valorização do capital desembolsado. Em segundo lugar, porque o valor de sua força de trabalho e, portanto, seu salário, está determinado, da mesma forma que nos demais operários assalariados, pelo custo da produção de sua força de trabalho específica e não pelo produto de seu trabalho.
“No entanto, entre ele e os operários empregados diretamente pelo capital industrial tem de mediar a mesma diferença entre o capital industrial e o comercial e a que existe, portanto, entre o capitalista industrial e o comerciante. O comerciante, como agente da circulação, não produz mais-valia (...), razão pela qual tampouco os operários mercantis dedicados por ele às mesmas funções, podem criar diretamente mais-valia para ele”.
Marx não trata os trabalhadores do comércio como uma classe à parte dos operários industriais; muito pelo contrário, denomina-os “operários mercantis”, reiterando que fazem parte da mesma classe social que os vinculados à fase produtiva. Diz ainda que entre uns e outros existe “a mesma diferença” que entre o capitalista industrial e um comerciante; ambos pertencem à mesma classe, mesmo cumprindo um papel diverso no processo produtivo.
Outra nota importante sobre os empregados do comércio, que foi assinalada por Osvaldo Garmendia , é que “estes trabalhadores realizam mais-trabalho para o capitalista, ainda que este trabalho não se materialize em mais-valia”. Garmendia une esta conclusão particular com a característica geral do modo capitalista de produção, que já assinalamos: a exploração do trabalho assalariado. “Esta apropriação de mais-trabalho, diz, pode dar-se pela apropriação de mais-valia pelo operário produtivo ou pode haver mais trabalho entregue gratuitamente pelo operário ao capitalista, que não se objetiva em mais-valia, mas permite ao capitalismo realizá-la e, assim, reduzir os gastos falsos (faux-frais), como dizia Marx”.
Marx conclui: “O operário comercial não produz diretamente mais-valia. Mas o preço de seu trabalho é determinado pelo valor de sua força de trabalho, isto é, por seu custo de produção, enquanto que o exercício dessa força de trabalho, como uma tensão que é dela, um desdobramento e desgaste da força de trabalho mesma, não se acha limitada, nem muito menos, como se acha limitado nenhum operário assalariado, pelo valor de sua força de trabalho. Por isso, seu salário não guarda uma relação necessária com a massa de lucros que ajuda o capitalista a realizar. O que custa ao capitalista e o que resta dela são duas magnitudes distintas. Este operário assalariado não rende ao capitalista criando diretamente mais-valia, mas ajudando-o a reduzir os gastos de realização da mais-valia, realizando o trabalho não-redistribuído, necessário para isto”. (...)
Nada autoriza, pois, a interpretar que os assalariados, vinculados na fase de “circulação” do capital (neste caso, bancários e comerciários), pertençam a uma classe social distinta dos vinculados à fase de produção (operários industriais, digamos). Ambos os setores de assalariados pertencem a uma mesma classe, tal como o capitalista dedicado ao comércio, aos bancos ou à indústria, pertence à sua.
“Na produção de mercadorias, a circulação é tão necessária como a própria produção, e os agentes da circulação necessários, por conseguinte, como os da produção. O processo de reprodução engloba ambas as funções do capital”. (...)
O pessoal intermediário das empresas
Podemos comprovar que Marx considera membros de uma mesma classe tanto os assalariados empregados diretamente na produção, como os vinculados à esfera da circulação do capital, e que uma série de trabalhos (artísticos, profissionais liberais etc.) estão em um processo crescente de assimilação pelo capital, em uma dinâmica de proletarização dos que o executam. Mas disto não se pode inferir que todo assalariado, pelo mero fato de sê-lo, é um membro da classe operária.
Há uma gama de empregados, cujas funções no interior de qualquer empresa têm um caráter aparentemente contraditório, exercendo um trabalho produtivo que os aproxima da classe operária, ao mesmo tempo representam o capital no interior do processo produtivo, pois lhes cabe executar diretamente as medidas de exploração (controle, planificação etc.) contra os trabalhadores em nome do capital. Nela podemos incluir os capatazes, supervisores, chefes, gerentes etc.
“Estes setores cumprem uma função em parte produtiva, enquanto suas funções derivam das necessidades do próprio processo de produção, em toda sociedade será necessário coordenar o processo produtivo. Mas além disso, cumprem uma função de vigilância e controle, de exploração da classe operária e, na medida em que a exercem, se opõem à classe operária”.
Para Garmendia, neste caso justifica-se a qualificação de “moderna classe média”, pois o trabalho destes setores não se encontra de todo assimilado pelo capital, e um grande setor deste pessoal intermediário não só é pago pelo valor de sua força de trabalho, mas também pode receber parte da mais-valia produzida pelos operários. Neste sentido, justifica-se o termo classe média moderna, porque “são produto do capitalismo, diferentemente da antiga pequena burguesia que tende a ser varrida pelo desenvolvimento capitalista”.
Dois setores se destacam entre o pessoal intermediário: por um lado, os gerentes, que, sendo os de mais alta hierarquia na empresa, representam diretamente o capital, pois seus interesses coincidem plenamente com ele; por outro, o setor inferior dos capatazes e supervisores, que, ao realizar, em parte, uma função produtiva de mais-valia, os leva a oscilar entre os interesses do capital, com os que em geral se choca, e os do restante dos trabalhadores.
Os servidores públicos e a estrutura social
Chegamos ao objetivo central de nossa investigação: os servidores públicos estatais. Obviamente em Marx não acharemos reposta direta e categórica à nossa pergunta central (qual é o caráter de classe dos servidores públicos?) pois, se assim fosse, não haveria uma polêmica que tem consumido não poucas páginas. Utilizemos, para começar, o método dedutivo, comparando as características definidas por Marx para a classe operária em geral e ver se os empregados públicos enquadram-se nelas.
1. Sua relação com os meios e instrumentos de trabalho: os servidores públicos, como o restante dos assalariados, e para sê-lo, se encontram despossuídos de seus meios e instrumentos de trabalho. Não são donos dos meios nem do produto dos mesmos.
2. Estão obrigados a vender sua força de trabalho: como o restante da classe operária, ao não serem donos dos meios de produção, a relação em que se encontram no mercado é a de vendedores de sua força de trabalho. Recordemos que, se fossem donos dos meios de produção e do produto de seu trabalho, a relação em que os encontraríamos no mercado seria a de vendedores de um produto, o que indicaria, então, pertencerem à pequena burguesia. Mas os servidores públicos possuem unicamente, como qualquer operário, a capacidade de trabalhar (força de trabalho), e a oferecem em troca de um salário. Tão óbvia é esta relação que os trabalhadores estatais passam ao setor privado e os trabalhadores privados passam ao setor público sem que mudem suas formas gerais de trabalho.
3. Não determinam as condições e ritmos de seu trabalho: esta característica se infere das anteriores, pois ao não serem dono dos meios de produção, e fazê-lo “para outro” (Estado), também suas condições de trabalho e os ritmos do mesmo são impostos como algo “alheio” a esses empregados públicos. Eles, como os trabalhadores de escritório da indústria privada, viveram no século XX um processo acelerado de divisão técnica do trabalho, o que aumentou a intensidade do mesmo, marcando um nível de assimilação (indireta) às condições de produção imposta pelo capital.
4. Em que relação os servidores públicos se encontram com o capital? Eles se enquadram perfeitamente na seguinte citação de Marx (tomo III), que já vimos, referida aos empregados do setor comercial: “O operário comercial não produz diretamente mais-valia. Mas o preço de seu trabalho determina-se pelo valor de sua força de trabalho, isto é, por seu custo de produção, enquanto que o exercício desta força de trabalho, como uma tensão que é dela, como uma liberação e um desgaste da força de trabalho mesma, não se acha limitada, nem muito menos, como não se acha limitada em nenhum operário assalariado, pelo valor de sua força de trabalho”.
Ao empregado comercial, como ao público, o salário é pago de acordo com o preço de sua força de trabalho, determinado pelo custo de sua reprodução. E isto não impede que trabalhe muito mais do que o tempo necessário (que é pago como valor da força de trabalho) produzindo um sobre-produto.
Entrega mais do que recebe, o que é o mesmo, se paga pelo produto de seu trabalho. Este sobre-trabalho não se materializa em mais-valia, porque seu produto não está destinado ao mercado, não é mercadoria (exceção feita às industrias estatais), mas é um serviço prestado pelo Estado para garantir as condições gerais do funcionamento da sociedade capitalista.
O docente assalariado pelo Estado, ao trabalhar por mais tempo do que o requerido para pagar o custo de sua força de trabalho, não está produzindo uma mercadoria que possa ser “capitalizada” neste mercado. Mas seu trabalho não deixa de ser essencial para o capitalismo, pois ele consiste em criar futuros assalariados com uma capacitação mínima para desempenhar distintos trabalhos. Quanto mais assalariados capacite em menos tempo, na mesma proporção barateia o custo desta futura força de trabalho. Então, a posteriori, reside o “lucro” que o capital extrai do docente público.
Para o caso das empresas estatais cujos produtos vão ao mercado, ocorre uma situação contraditória. O sobre-produto de seu trabalho se converte em mercadoria e, portanto, em mais valor a ser trocado.
O beneficiário imediato deste sobre-trabalho não é diretamente o capital privado, mas as finanças da empresa e do Estado. Mas há que assinalar que as empresas estatais desenvolvem-se em áreas necessárias para o funcionamento social, mas de baixa rentabilidade ou alto risco. Por isso, o capital privado descarta intervir de forma direta em sua exploração, preferindo que o Estado os brinde com os benefícios obtidos pelo capital de forma indireta, pois obtendo-se a baixo custo, os incorpora a seu processo produtivo e os transfere ao produto final que sai de suas empresas. Ou seja, aumentam os lucros capitalistas reduzindo o custo de financiamento.
No Tomo II dos Grundisse, falando do papel do Estado na relação das condições gerais da produção, Marx assinala: “Pode fazer trabalho ou investimentos que sejam necessários, sem serem produtivos no sentido do capital, isto é, sem que o sobre-trabalho contido neles se realize como mais-valor por meio da circulação, do intercâmbio”.
Imediatamente, dá o exemplo do caso do operário estatal que constrói uma estrada, na qual deixou modelado seu sobre-trabalho, mas que não se pode vender. Este, sem dúvida, é o caso da maioria dos servidores públicos que trabalham na administração do Estado e nos serviços prestados por este, os quais, sendo pagos pelo custo de sua força de trabalho, deixam um sobre-trabalho não retribuído, mas que não se pode concretizar em mais-valia, já que não se troca no mercado.
Em outras palavras, os empregados públicos não são pagos com o capital variável, mas com o rendimento (impostos). “Por conseguinte, todas as condições gerais, coletivas da produção – enquanto não possa ocorrer sua criação pelo capital enquanto tal, sob suas condições – se cobrem com uma parte do rendimento nacional, do erário público, e os operários não se apresentam como trabalhadores produtivos, ainda que aumentem a força produtiva do capital”.
O empregado público ou estatal, “mesmo sendo um assalariado livre como outro qualquer, do ponto de vista econômico está, no entanto, em outra relação, se não de capital, enquanto capital”. Ao não produzir mais-valia, ainda que seu trabalho seja necessário para o funcionamento do sistema, o servidor público não é produtivo “no sentido do capital”, ele se acha “em outra relação” com o capital, ajuda a produzir as condições gerais da produção, aumentando a força produtiva do capital.
* Extrato do artigo publicado na revista Marxismo Vivo “Os trabalhadores do estado e a teoria marxista das classes sociais”.

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