A explicação marxista das crises
Ernest Mandel
Tradução para o Português de Carlos Bittencourt a partir do texto em espanhol retirado do site www.ernestmandel.org
A teoria marxista das crises rechaça toda concepção mono causal. As crises se devem exclusivamente ao excesso de capitais (super acumulação) ou, o que é equivalente, à insuficiência da massa de mais-valia produzida normalmente. Não se devem exclusivamente à insuficiência do poder de compra por parte das massas. Tampouco se devem exclusivamente à desproporção entre os dois departamentos fundamentais da produção, o departamento de bens de produção e o departamento de bens de consumo. Todas essas causas desempenham um papel no desencadeamento da crise e em sua reprodução cíclica, mas nenhuma delas determina, por si só, a irrupção regular das crises.
A razão pela qual Marx rechaça toda explicação mono causal das crises é que considera o ciclo industrial e a crise de superprodução nas quais aquele desemboca regularmente, como inerentes ao modo de produção capitalista. Este modo de produção está baseado sobre a produção mercantil generalizada. É do fato de que os meios de produção (incluídas as terras) e a força de trabalho se terem convertido em mercadorias, de onde se deduz a relação capital/trabalho assalariado, isto é, o modo de produção capitalista.
Agora, produção mercantil generalizada implica um trabalho não imediatamente social, implica contradição entre trabalho privado e trabalho social, disposição fragmentada dos meios de produção (é dizer propriedade privada no sentido econômico e não puramente jurídico do termo), flutuações dos investimentos no tempo, contradição entre valor de uso e valor de troca, contradição entre mercadoria e dinheiro. Daí se deduz a oposição fundamental de Marx à “Lei do equilíbrio” de J. B. Say e aos erros paralelos de Ricardo. Para Marx, a produção não cria automaticamente sua própria demanda, rechaço das teses que são retomadas pelos monetaristas e os economistas “supply-side” de hoje.
As crises fundam suas raízes no fato de que as condições de produção da mais-valia não implicam automaticamente as condições de sua realização (não coincidem automaticamente com elas).
Neste sentido, no marco da teoria marxista das crises, a crise é por sua vez uma crise de superprodução de capitais e uma crise de superprodução de mercadorias. Em sua preparação e em sua irrupção intervêm todas as contradições internas do modo de produção capitalista. Pode se representar a crise como determinada fundamentalmente pela queda tendencial da taxa média de lucro na medida que as flutuações da taxa de lucro resumem o conjunto destas contradições.
Por sua própria essência, a crise capitalista é então uma crise de superprodução de valores de troca. Nisto, ela se contrapõe às crises das sociedades pré-capitalsitas e às crises das sociedades pós-capitalistas, que são essencialmente crises de subprodução de valores de uso. Estas crises se combinam nestes casos, em graus diferentes, com fenômenos ligados ao mercado, na medida em que a produção mercantil se desenvolve ou sobrevive nestas sociedades. Por outro lado, enquanto subsiste o modo de produção capitalista e a economia continua sendo regida pela lei do valor, as crises de superprodução são inevitáveis.
(...)
Nós definimos as crises depois da segunda guerra mundial – na época do capitalismo tardio – como recessões, porque são crises combinadas com uma inflação permanente que atenua parcialmente seus efeitos. A inflação do crédito, quer dizer da moeda fiduciária, da “moeda bancária”, permite vender mais mercadorias do que com o poder de compra efetivamente criado durante o processo de produção. Permite acumular mais capitais do que com a mais-valia efetivamente produzida no curso do processo de produção e realizada no curso do processo de circulação. Apesar de toda a demagogia dos monetaristas e todas as medidas deflacionistas tomadas pelos governos burgueses (tanto de “direita” como de “esquerda”), a inflação subsiste no curso do atual ciclo industrial, ainda que ela tenha sido reduzida em relação aos anos 70 (mas não com relação aos anos 50 e 60).
Mas o capitalismo tardio não pode atenuar durante um período limitado suas contradições internas por meio da inflação permanente sem pagar um preço elevado – a longo prazo insuportável – por esta tendência: a desorganização crescente de seu sistema monetário internacional, os crescentes riscos de arruinamento de todo os sistema bancário e de todo o sistema de crédito internacional.
Hipocritamente, os capitalistas e seus ideólogos concentram seu fogo, a este respeito, sobre as dívidas dos países chamados “de Terceiro Mundo” e dos Estados chamados socialistas (que nós preferimos chamar Estados operários burocratizados ou Estados pós-capitalistas). Mas em realidade, o capitalismo atravessou um imprevisto boom econômico depois da segunda guerra mundial flutuando sobre um oceano de dívidas que transbordam pelos quatro cantos: 1) as empresas capitalistas privadas, inclusive as firmas multinacionais; 2) os países do Terceiro Mundo; 3) os governos imperialistas; 4) os governos dos Estados operários burocratizados. Destas quatro massas de dívidas, a mais importante é a primeira e não a segunda. A terceira já superou a quarta e pode superar a segunda.
(...)
Ciclo industrial e ondas longas
O fato de Marx ter desnudado os mecanismos fundamentais, estruturais, das crises de superprodução capitalista, implica que há características fundamentais, estruturais, comuns entre todas as crises. Mas não implica que todas as crises são estritamente idênticas. Cada Crise representa uma combinação de traços gerais e traços particulares. O próprio Marx analisou em detalhe as características particulares de uma série de crises que ele viveu, como a crise de 1857-1858 e seu aspecto monetário, e a de 1861 ligada às conseqüências da Guerra de Secessão nos Estados Unidos.
Não posso analisar em detalhe todos as características particulares das crises de 1970-1971, de 1974-1975 e de 1980-1982. Mas quero insistir sobre um aspecto essencial desta combinação de trações particulares e traços gerais das crises atuais: a combinação entre o ciclo industrial septenal ou hexenal, e a onda longa expansiva que se estende de 1948-1949 a 1968 (salvo nos países anglo-saxões, onde começou, sem dúvida, desde 1940).
Esta combinação entre ciclo industrial clássico e onda longa depressiva tem conseqüências consideráveis sobre a evolução econômica a médio e longo prazo. Tem conseqüências igualmente importantes no plano social e político.
A onda longa depressiva atualmente em curso caracteriza-se pela “vulgarização” das inovações tecnológicas iniciadas durante a onda longa expansiva precedente, o qual é por outra parte uma característica geral das ondas longas destas duas tonalidades fundamentais diferentes.
Na prática isto quer dizer três coisas: 1) manutenção de uma taxa de crescimento anual bastante elevada da produtividade; 2) baixa e até desaparecimento da “renda tecnológica”, dos superlucros monopolísticos dos grandes trustes, incluídas as “multinacionais”, o que contribui para deprimir a taxa média de lucro; 3) descenso considerável da taxa média da produção, que permanece durante um longo tempo inferior a taxa de crescimento da produtividade. O resultado é claro: simultaneamente, o aumento do desemprego e a ofensiva de austeridade da burguesia se manterão durante um longo período, independente das flutuações cíclicas da produção anual.
Para não falar mais do desemprego dos países imperialistas: subiu de 10 milhões em 1970 a 15 milhões em 1975, a 20 milhões em 1978, a 30 milhões em 1980, a 35 milhões em 1983 e alcançará 40 milhões em 1985, independente da recuperação em curso. Por outro lado, trata-se de estatísticas que subestimam fortemente a realidade, pois não incluem a todos aqueles e aquelas que como dizem tão elegantemente os ideólogos burgueses e pequeno-burgueses, “abandonaram o mercado de trabalho” perdendo toda a esperança de encontrar um emprego. Trata-se antes de tudo das mulheres rechaçadas para os lares e dos trabalhadores imigrados rechaçados até seus países de origem.
No marco da onda larga depressiva, houve dessincronização cíclica entra as crises que castigam os países imperialistas e a crise que castiga aos países semi-coloniais e os países dependentes semi-industrializados. Especialmente estes últimos puderam manter uma taxa de crescimento relativamente elevada, sobretudo no México, no Brasil, na Coréia do Sul, na Índia, em Taiwan e numa série dos países da OPEP. Mas a partir de 1980, a situação mudou radicalmente. Hoje os países chamados de terceiro mundo são golpeados duramente pela crise.
[...]
1 de junho de 1983
Comentários