DA PEQUENA PRODUÇÃO MERCANTIL AO MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA
Ernest mandel
1. Produção para satisfação das necessidades e produção para a troca
Uma tal forma de produção pressupõe uma organização deliberada do trabalho. Por conseqüência, o trabalho é aí imediatamente social. Dizer organização deliberada do trabalho não significa necessariamente organização consciente (nem certamente científica), nem organização minuciosa. Muitas coisas podem ser deixadas ao acaso, precisamente porque a atividade econômica não preside qualquer tendência para o enriquecimento. Os costumes, os hábitos ancestrais, os usos, os ritos, a religião, a magia, podem determinar a alternância e o ritmo das atividades produtivas. Mas estas são sempre essencialmente destinadas à satisfação de necessidades imediatas das coletividades e não à troca ou enriquecimento tornado um fim em si.
De semelhante organização da vida econômica destaca-se pouco a pouco uma forma de organização econômica diametralmente oposta. A partir de um processo de divisão do trabalho, da aparição de um certo excedente, o potencial de trabalho da coletividade vai-se progressivamente fracionando em unidades (grandes famílias, famílias patriarcais) que trabalham independentemente umas das outras. O caráter privado do trabalho e a propriedade privada dos produtos do trabalho, ou seja, dos meios de produção, interpõem-se entre os membros da comunidade. E impedem estes de estabelecer relações econômico-sociais deliberadas imediatamente entre si. Estas unidades ou indivíduos deixam de se relacionar uns com os outros na vida econômica, através de uma associação direta. Relacionam-se uns com os outros por intermédio da troca dos produtos do seu trabalho.
A mercadoria é um produto do trabalho social que se destina a ser trocado pelo seu produtor e não a ser consumido por ele ou pela coletividade de que faz parte. Pressupõe, pois uma situação social fundamentalmente diferente daquela em que a massa dos produtos é destinada ao consumo imediato das coletividades que a produzem. Há por certo casos transitórios (por exemplo, na nossa época, as chamadas formas de subsistência, que vende no mercado pequenos excedentes). Mas para apreender bem a diferença fundamental entre uma situação social na qual se produz essencialmente para o consumo direto dos produtores, e a situação na qual se produz para a troca, é preciso relembrar a resposta maliciosa do socialista alemão Ferdinand Lassale a um economista liberal da sua época: “sem dúvida, o Sr. Dupont-Dupont, empresado funerário, fabrica, à partida, caixões para seu próprio uso e dos membros da sua casa, vendendo apenas o excedente que lhe resta...”
Embora tenha havido múltiplas formas de pequena produção mercantil teve o seu principal desenvolvimento entre os séculos XIV e XVI, na Itália do norte e do centro, bem como nos Países Baixos do sul e do norte, devido ao desaparecimento da servidão nessas regiões e nessas épocas, e ao fato de que os proprietários de mercadorias, que se reuniam no mercado, eram aí, em geral, livres e mais ou menos iguais em direitos.
É precisamente esse caráter de liberdade e de igualdade relativas dos proprietários de mercadorias, no interior de uma sociedade fundada sobre a pequena produção mercantil, que permite apreender a própria função da troca: permitir a continuidade de todas as atividades produtivas essenciais, apesar de uma já avançada divisão do trabalho, e sem que essas atividades dependam de deliberadas decisões da coletividade ou de seus dirigentes.
A organização do trabalho fundada na repartição deliberada e previamente prevista da mão-de-obra entre os diversos ramos de atividades essenciais para a satisfação das necessidades da sociedade, é agora substituída por uma divisão do trabalho mais ou menos “anárquica” e “livre”, na qual aparentemente o acaso governa esta mesma repartição dos recursos produtivos vivos e mortos (instrumentos de trabalho). A troca e o seu resultado substituem agora a planificação tradicional ou consciente para repartir esses recursos. Mas isso deve fazer-se de tal modo que a continuidade da vida econômica seja assegurada (é certo que com muito “acidentes de percurso”, de crise, de interrupção da produção) que, a grosso modo, todas as atividades essenciais encontrem quem as exerça.
Chamamos “lei do valor” a lei que governa a troca das mercadorias e, por seu intermédio, a repartição da forças de trabalho e de todos os recursos produtivos, entre os diferentes ramos de atividade. Trata-se pois claramente de uma lei econômica que se funda essencialmente sobre uma forma de organização do trabalho, sobre relações estabelecidas entre os homens, distintas daquelas que presidem à organização de uma economia planificada segundo os costumes ou segundo as opções conscientes de produtores associados.
A lei do valor assegura o reconhecimento social do trabalho, tornado trabalho privado. Neste sentido, deve funcionar na base de critérios objetivos, iguais para todos. É pois inconcebível que um sapateiro preguiçoso, tendo necessidade de dois dias de trabalho para produzir um par de sapatos que um sapateiro hábil produziria num só dia de trabalho, produza afinal duas vezes mais de valor que este último. Semelhante funcionamento do mercado, ao recompensar a preguiça ou a indolência e a falta de qualificação, conduziria uma sociedade, fundada na divisão do trabalho e no trabalho privado, à sua rápida regressão ou mesmo à sua extinção.
É por isso que a equivalência das jornadas de trabalho, assegurada pela lei do valor, é uma equivalência de trabalho à media social de produtividade. Esta média, numa sociedade pré-capitalista, é geralmente estável e por todos conhecida, porque a técnica produtora não evolui ou só muito lentamente o faz. Dizemos pois que o valor das mercadorias é determinado pela quantidade de trabalho socialmente necessário para as produzir.
Contudo muito rapidamente a pequena produção mercantil exige a aparição de um meio de troca universalmente aceita (chamado também “equivalente geral”) para facilitar a troca, através do qual todas as mercadorias são trocadas indiferentemente, é a moeda. Com o aparecimento da moeda, um outro personagem social, uma outra classe social pode aparecer, em razão de um novo progresso da divisão social do trabalho: o proprietário de dinheiro, separado e oposto ao proprietário de mercadorias simples. É o usurário ou o mercador especializado no comércio internacional.
Este proprietário de dinheiro exerce no mercado uma atividade muito diferente da do pequeno agricultor ou artesão. Como surge no mercado com uma soma determinada de dinheiro, para ele já não se trata de vender para comprar, mas, pelo contrário, de comprar para vender. O pequeno artesão ou camponês vende para comprar uma mercadoria diferente daquela que ele próprio produz; mas a finalidade dessa operação permanece a satisfação de necessidades mais ou menos imediatas. Inversamente, o proprietário de dinheiro não pode “comprar para vender” tendo somente em vista satisfazer as suas necessidades. Para o banqueiro ou o mercador, comprar para vender não tem sentido, se não vende por uma soma que exceda aquela com a qual se apresentou no mercado. O aumento do valor do seu dinheiro de uma mais valia, quer dizer, o enriquecimento como fim em si, eis o sentido da atividade do usurário e do mercador.
O capital – porque é dele que se trata, sob a sua forma inicial e elementar de capital-dinheiro – é todo o valor que procura apropriar-se de uma mais-valia, que é lançado na busca de uma mais-valia. Esta definição marxista do capital opõe-se à definição corrente dos manuais burgueses segundo a qual o capital seria simplesmente todo o instrumento de trabalho, ou até, de forma ainda mais vaga, “todo bem durável”. Por esta definição, o primeiro macaco que tivesse varejado uma bananeira com um pau para apanha uma banana, teria sido o primeiro capitalista.
Sublinhe-se uma vez mais: como todas as “categorias econômicas”, a categoria “capital” não pode ser entendida sem a considerar como fundada sobre uma relação social entre os homens: a saber, uma relação tal que permite a um proprietário de capital apropriar-se de uma mais-valia.
O usurário e o mercador aparecem de início no seio de sociedades pré-capitalistas, escravagistas, feudais ou fundadas sobre o modo de produção asiático. Operam aí fora da esfera da produção. Asseguram aí a introdução do dinheiro numa sociedade natural (dinheiro que em geral aflui do estrangeiro), introduzem produtos de luxo vindos de longe, asseguram um mínimo de crédito às classes possuidoras desprovidas de fortunas mobiliárias, bem como aos reis e imperadores.
Semelhante capital é politicamente vulnerável, sem proteção contra as exações, a rapina e o confisco. Essa é de resto a sua sorte habitual; e é por isso que esse capital protege ciosamente o seu tesouro, escondendo-o mesmo em parte, evitando cuidadosamente investi-lo na totalidade pelo receio de provocar a sua confiscação. Alguns dos grupos de proprietários de capitais mais avultados dos primeiros séculos da Idade Média foram vítimas dessas confiscações: por exemplo, os Templários, no século XIV na França. Os banqueiros italianos, financiadores das guerras dos reis da Inglaterra viram-se desapossados pelo fato desses reis nada os terem reembolsado das suas dívidas.
Foi só quando as relações de força políticas mudaram ao ponto dessas confiscações diretas ou indiretas se tornarem cada vez mais difíceis, que o capital se pôde acumular - crescer -, de maneira cada vez mais contínua. A partir desse momento, a penetração do capital na esfera de produção tornou-se possível e, com ela, o nascimento do modo de produção capitalista, o nascimento do capital moderno.
Agora, o detentor de capitais não é simplesmente usurário, banqueiro ou mercador. É proprietário de meios de produção, alugador de braços, organizador da produção, fabricante, manufaturador ou industrial. A mais-valia deixa de ser extraída da esfera da distribuição. Passa a ser correntemente produzida no decurso do próprio processo de produção.
É claro que uma tal mais-valia resulta apenas de atividades de transferência. A riqueza global da sociedade, tomada no seu conjunto, em nada foi aumentada. Perdem uns o que outros ganham. Em conseqüência, durante milênios, a riqueza mobiliária global da humanidade pouco aumentou. É diferente o que sucede desde o advento do modo de produção capitalista. E isso porque a partir desse momento, a mais-valia já não é simplesmente subtraída do processo de circulação das mercadorias. É agora correntemente produzida e portanto correntemente também acrescida ampliada, no decurso da própria produção.
Já vimos que em todas as sociedades de classe pré-capitalistas, os produtores (escravos, servos, camponeses) eram obrigados a dividir a sua semana de trabalho, ou a sua produção anual, entre uma parte que ele próprios podiam consumir (produto necessário) e uma parte de que se apropriava a classe dominante (sobreproduto social). Na fábrica capitalista, manifesta-se o mesmo fenômeno, embora velado pela aparência das relações mercantis, que simulam governar a “livre compra e a livre venda” da força de trabalho, entre o capitalista e o operário.
Quando o operário inicia o seu trabalho na fábrica, ao princípio de sua jornada (ou da sua semana) de trabalho, incorpora um valor às matérias-primas que elabora. Ao fim de um certo número de horas (ou de jornadas) de trabalho, reproduziu um valor que é exatamente o equivalente do seu salário quotidiano (ou semanal). Se suspendesse o trabalho nesse preciso momento, o capitalista não obteria sequer um centavo de mais-valia. Mas, em tais condições, o capitalista não teria evidentemente nenhum interesse em comprar esta força de trabalho. Tal como o usurário ou o mercador da idade média, ele “compra para vender”.
Compra a força de trabalho para obter dela um produto mais elevado do que o que gastou para comprar. Este “suplemento”, este “excedente”, é precisamente a sua mais-valia, o seu lucro. Entende-se pois que, se o operário produz o equivalente ao seu salário em 4 horas de trabalho, trabalhará não apenas 4 mas 6, 7, 8 ou 9 horas. Durante essas 2, 3, 4 ou 5 horas “suplementares”, produz a mais-valia para o capitalista, em troca da qual nada recebe.
Com efeito, o capitalista não comprou no mercado “o valor produzido ou a produzir pelo operário”. Não comprou o seu “trabalho”, ou seja, o trabalho que o operário vai efetuar (se o tivesse feito, teria efetivamente praticado um roubo puro e simples; teria pago 1000 escudos pelo que vale 2000 escudos). Comprou a força de trabalho do operário. Esta força de trabalho tem o seu valor. O valor da força de trabalho é determinado pela quantidade de trabalho necessário para a reproduzir, ou seja, para subsistência (no sentido lato do termo) do operário e da sua casa. A mais valia tem origem no fato de manifestar-se um distanciamento entre o valor produzido pelo operário e o valor das mercadorias necessárias para assegurar a sua subsistência. Este distanciamento é devido ao aumento da produtividade do trabalho do operário. O capitalista pode apropriar-se do incremento da produtividade do trabalho porque a força do trabalho se tornou uma mercadoria, pois o operário foi colocado em condições tais que só pode produzir para a sua própria subsistência.
a) A separação dos produtores dos seus meios de produção e de subsistência. Esta separação efetuou-se designadamente na agricultura pela expulsão dos pequenos camponeses das terras senhoriais transformadas em prados; no artesanato pela destruição das corporações medievais; pelo desenvolvimento da indústria domiciliar; pela apropriação privada das reservas de terras virgens, etc.
b) A formação de uma classe social que monopoliza estes meios de produção: a burguesia moderna. O aparecimento desta classe supõe a prévia acumulação de capitais sob a forma de dinheiro, seguida de uma transformação dos meios de produção que torna estes tão caros que somente os proprietários de capital-dinheiro avultado podem adquiri-los. A revolução industrial do século XVIII, baseando doravante a produção sobre o maquinismo, realiza esta transformação de maneira definitiva.
c) A transformação da força de trabalho em mercadoria. Esta transformação resulta do aparecimento de uma classe que nada mais possui que a sua força de trabalho, e que, para poder subsistir, é obrigada a vender essa força de trabalho aos proprietários dos meios de produção.
Porque esta massa de proletários não tem liberdade de escolha – a não ser a escolha entre a venda de sua força de trabalho e a fome permanente – é obrigada a aceitar como preço da sua força de trabalho o preço ditado pelas condições capitalistas normais no mercado do trabalho, quer dizer, o mínimo vital socialmente reconhecido. O proletariado é a classe dos que são obrigados, por esta coação econômica, a vender a sua força de trabalho de maneira mais ou menos contínua.
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