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A ORDEM SOCIAL CAPITALISTA

Capitulo I do livro "ABC DO COMUNISMO" obra dos dois dirigentes e teóricos de economia do Partido Bolchevique russo, foi escrita em 1919 para ser usada nos cursos básicos do partido. Disponível em: http://www.marxists.org/portugues/bukharin/index.htm

N. Buckarin[1] e E. Preobrazhenski[2]

A produção de mercadorias

Quando examinamos como se desenvolve a produção numa ordem social capitalista, vemos que, antes de tudo, aí se produzem mercadorias. “Que há nisto de especial?” poderiam perguntar. O que há de especial é que a mercadoria não é um produto qualquer, mas um produto que se destina ao mercado.

Um produto não é uma mercadoria, desde que seja feito para atender à nossa própria necessidade.

Quando o camponês semeia o seu trigo, depois de o colher e de o debulhar, mói o grão e fabrica o pão para si mesmo, tal pão não é uma mercadoria, é simplesmente pão.

Só se tornará mercadoria quando vendido e comprado, isto é, quando for produzido para o comprador, para o mercado; pertencerá a quem o comprar.

No sistema capitalista, todos os produtos se destinam ao mercado, todos se convertem em mercadorias. Cada fábrica ou oficina, ordinariamente, só confecciona um produto, e esse produto, evidentemente, não é feito para a necessidade do fabricante.

Quando um empresário explora uma fábrica de caixões de defunto, é claro que tais caixões não são feitos para ele ou para a sua família, mas para o mercado. Quando um fabricante produz óleo de rícino, é claro também que, embora ele mesmo tenha constantemente indigestões, só guardará para si uma pequena quantidade do óleo produzido pela sua fábrica. No sistema capitalista, tudo se passa assim, seja qual for o produto.

Numa fábrica de botões produzem-se botões, mas esses milhões de botões não são fabricados para serem pregados no colete do fabricante, mas para venda: tudo o que é produzido na sociedade capitalista é produzido para o mercado; é para o mercado que vão as luvas e as lingüiças cozidas, os livros e a cera, os metais e a aguardente, o pão, o calçado e as armas; em resumo, tudo o que se produz.

A produção de mercadorias pressupõe, necessariamente, a existência da propriedade privada. O artesão ou o pequeno industrial que fabrica mercadoria é proprietário da sua oficina e dos seus instrumentos de trabalho; o fabricante ou o proprietário possui a sua fábrica ou a sua oficina, abrangendo todo o edifício, maquinaria, etc. Mas, desde o instante em que existem propriedade privada e produção de mercadorias, sempre existe a luta em torno do comprador, isto é, concorrência entre os vendedores. Mesmo quando ainda não existiam fabricantes, grandes capitalistas, mas simples artesãos, estes últimos lutavam entre si para obter o comprador. E aquele que era mais forte, mais esperto, que tinha melhores instrumentos de trabalho, mas, sobretudo, aquele que tinha economizado dinheiro, sempre vencia, dominava o comprador, arruinava os demais artesãos e chegava à prosperidade. Por conseguinte, a pequena propriedade produtora de mercadorias já trazia em germe a grande propriedade, e já causava muitas ruínas.

Sendo assim, o primeiro traço característico da ordem social capitalista é a produção de mercadorias, a produção destinada ao mercado.

Monopólio dos meios de produção pela classe capitalista

Este caráter não é suficiente para definir o capitalismo. Pode existir uma produção de mercadorias sem capitalistas, por exemplo, a produção feita pelos pequenos fabricantes. Estes produzem para o mercado e vendem os seus produtos; por conseqüência, os seus produtos são, de fato, mercadorias, e a sua produção uma produção de mercadorias. No entanto, trata-se de uma produção simples de mercadorias, e não de uma produção capitalista. Para que esta produção simples se transforme em produção capitalista, é preciso, de um lado, que os meios de produção (instrumentos, máquinas, edifícios, solo, etc.) se convertam em propriedade de uma classe pouco numerosa de poderosos capitalistas, e, de outro lado, que um grande número de fabricantes independentes e de camponeses fiquem arruinados e se convertam em operários.

Já vimos que a produção comum de mercadorias contém em germe, a ruína de uns e o enriquecimento de outros. Foi o que aconteceu, efetivamente, em todos os países, tendo-se arruinado quase todos os pequenos fabricantes e os pequenos patrões. Os mais pobres iam até à venda dos seus instrumentos de trabalho e, os patrões convertiam-se em pessoas que só possuíam os seus braços. Os que eram um pouco mais ricos, cada vez mais o ficavam, transformavam e ampliavam as oficinas, instalavam numerosos operários e transformavam-se em capitalistas.

Pouco a pouco, esses ricos apoderaram-se de tudo quanto era necessário à produção: edifícios, máquinas, matérias-primas, entrepostos e armazéns, casas, minas, ferrovias, navios. Todos esses meios de produção tornaram-se propriedade exclusiva da classe capitalista (ou, como se diz, o “monopólio” dos capitalistas). Um punhado de ricos possui tudo; uma imensa quantidade de pobres só possui os seus braços.

O monopólio da classe dos capitalistas sobre os meios de produção é o segundo traço característico do sistema capitalista.

O salário

Grande número de pessoas que ficaram sem a menor propriedade transformou-se em operários assalariados do Capital. Que devia fazer, com efeito, o camponês ou o fabricante arruinado? Das duas, uma: ou entrar como criado na casa de um proprietário agrícola, ou ir para a cidade a fim de trabalhar numa fábrica ou numa oficina. Não havia, para eles, outro caminho. Tal foi a origem do sistema salarial, este terceiro traço característico da ordem social capitalista.

O que é o sistema salarial? Antigamente, no tempo dos servos e dos escravos, podia vender-se ou comprar-se cada servo e cada escravo. Homens, com sua pele, seus cabelos, suas pernas e seus braços, eram a propriedade privada de seus senhores. O senhor mandava chicotear, até à morte, o seu servo, assim como quebrava, por exemplo, quando embriagado, uma cadeira ou um tamborete. O servo ou o escravo não passava de uma simples coisa. Entre os antigos romanos, as propriedades necessárias à produção eram francamente divididas em “instrumentos de trabalho mudos” (as coisas), “instrumentos de trabalho semimudos” (os animais de carga, carneiros, vacas, bois, etc.) e “instrumentos falantes” (os escravos, os homens). Uma pá, um boi, um escravo, eram para o senhor, indistintamente, instrumentos que ele podia vender, comprar, destruir.

No sistema salarial o homem, propriamente, não é vendido nem comprado. O que é vendido ou comprado é a sua força de trabalho, e não ele mesmo. O operário assalariado, pessoalmente é livre; o fabricante não pode espancá-lo nem vendê-lo ao vizinho, não pode trocá-lo por um jovem cão de caça, como se fazia no tempo da servidão. O que o operário faz, propriamente, é alugar os seus serviços. Parece que o capitalista e o operário estão no mesmo pé de igualdade. “Se não quiseres, não trabalhes, ninguém te obriga a trabalhar”, dizem os patrões. Chegam mesmo a afirmar que sustentam os operários, fazendo-os trabalhar.

Na realidade, os operários e os capitalistas não se encontram no mesmo pé de igualdade. Os operários são acorrentados ao Capital pela fome. A fome é que os obriga a empregar-se, isto é, a vender a sua força de trabalho. Para o operário, não existe outra escolha. Tendo as mãos vazias, não pode organizar a sua “própria” produção; que se procure, pois, fundir o aço, tecer, construir vagões, sem máquinas e sem instrumentos! Mas, a própria terra, no sistema capitalista, pertence toda ela a particulares; ninguém pode instalar-se em qualquer parte para cultivá-la. A liberdade que tem o operário de vender a sua força de trabalho, a liberdade que tem o capitalista de comprá-la, a “igualdade” entre o capitalista e o operário – tudo isto é, de fato, uma cadeia da fome que obriga o operário a trabalhar para o capitalista.

Sendo assim, o sistema salarial consiste, essencialmente, na venda da força de trabalho ou na transformação dessa força em mercadoria. Na produção de mercadorias de forma simples, de que se tratou anteriormente, podiam encontrar-se no mercado pão, leite, tecidos, botas, etc., mas nenhuma força de trabalho. Esta força não era vendida. O seu proprietário, o pequeno fabricante, possuía ainda, além dela, a sua casinha, os seus instrumentos. Ele mesmo é que trabalhava, utilizando a sua própria força na sua própria exploração.

Não se dá o mesmo no sistema capitalista, onde aquele que trabalha não possui nenhum meio de produção; não pode utilizar a sua força de trabalho em sua própria exploração; é obrigado, para não morrer de fome, a vendê-la ao capitalista. Ao lado do mercado em que se vendem o algodão, o queijo e as máquinas, cria-se um mercado do trabalho em que os proletários, isto é, os operários assalariados, vendem a sua força de trabalho. Conseqüentemente, o que distingue a produção capitalista da produção simples de mercadorias é que, na produção capitalista, a própria força de trabalho se converte em mercadoria.

Assim, o terceiro traço característico do sistema capitalista é o trabalho assalariado.

Relações entre os homens na produção capitalista

Os traços característicos do sistema capitalista são três: 1º) A produção para o mercado (produção de mercadorias); 2º) O monopólio dos meios de produção pela classe capitalista; 3º) O trabalho assalariado, isto é, baseado na venda da força de trabalho.

Mas, que relações têm os homens quando fabricam e repartem os produtos? Quando se fala de “produção de mercadorias” ou de “produção para o mercado”, que significa isto? Significa que os homens trabalham uns para os outros, mas que cada um produz, por sua parte, para o mercado, sem saber quem lhe comprará a mercadoria. Suponhamos o pequeno fabricante A e o camponês B. O pequeno fabricante A leva ao mercado as botas que ele fabricou, vendendo-as para B; com o dinheiro recebido, ele compra pão de B. Quando se dirigia ao mercado, A não sabia que havia de encontrar B, um e outro iam, muito simplesmente, ao mercado. Quando A compra o pão e B, as botas, parece que B tinha trabalhado para A e A para B; mas, isto não se percebe, assim, à primeira vista. A confusão do mercado é que os impede de ver que, na realidade, trabalham um para o outro e não podem viver um sem o outro. No sistema da produção de mercadorias, os homens trabalham uns para os outros. Conseqüentemente, neste sistema, as funções dos homens repartem-se de modo particular; os homens encontram-se em certas relações mútuas; trata-se, pois, aqui, de relações entre os homens.

Quando se fala do “monopólio dos meios de produção” ou do “trabalho assalariado”, trata-se, igualmente, de relações entre os homens. E, com efeito, que significa esse “monopólio”? Significa que os homens, fabricando os produtos com meios de produção de que não são proprietários — os trabalhadores — estão sujeitos aos possuidores desses meios, isto é, aos capitalistas. Em resumo, trata-se também de relações entre os homens na fabricação dos produtos. Essas relações entre os homens, no curso da produção, chamam-se relações de produção.

Não é difícil verificar que as relações de produção não foram sempre as mesmas. Houve um tempo em que os homens viviam em pequenas comunidades, trabalhavam em comum, como camaradas, iam à caça, à pesca, colhiam os frutos e as ervas, e, a seguir, dividiam tudo isto entre si. Era uma forma de relações de produção. No tempo da escravidão, havia outras relações de produção. No sistema capitalista, existem ainda outras relações, e assim por diante. Por conseguinte, há diversas espécies de relações de produção. São denominadas: estrutura econômica da sociedade ou modos de produção.

“As relações capitalistas de produção”, ou antes, a “estrutura capitalista da sociedade” — são as relações existentes entre os homens na produção das mercadorias, efetuadas com meios de produção monopolizados por um punhado de capitalistas e com o trabalhador assalariado da classe operária.

A exploração da força de trabalho

Uma pergunta se impõe. Com que fim a classe capitalista contrata operários? Todo o mundo sabe que não é, de nenhum modo, porque os fabricantes desejam sustentar os operários esfomeados, mas sim porque querem tirar lucro deles. Tendo em vista que o lucro é que contrata operários, tendo em vista que o lucro é que fareja os lugares em que se vende mais caro, o lucro dirige todos os seus cálculos. Nisto, também, existe um aspecto curioso da sociedade capitalista. Não é a própria sociedade que produz, com efeito, o que lhe é necessário e útil, mas sim a classe dos capitalistas é que obriga os operários a produzir o que se paga mais caro, aquilo de que ela pode tirar o maior lucro. A aguardente, por exemplo, é uma coisa muito prejudicial, e só se deveria fabricar o álcool para aplicações técnicas e medicinais. E, no entanto, em todo o mundo há capitalistas que consagram todas as suas energias à fabricação da aguardente. Por quê? Porque se pode tirar um grande lucro da embriaguez do povo[3].

Precisamos explicar, agora, como se forma o lucro. Para isto, encaremos mais de perto a questão. O capitalista recebe o seu lucro sob a forma de dinheiro, ao vender a mercadoria produzida na sua fábrica. Que soma recebe ele? Depende do preço da mercadoria. Mas, quem é que fixa esse preço? Por que o preço é alto para certas mercadorias e baixo para outras? Uma coisa, é fácil de observar: quando, numa indústria qualquer, se introduzem novos maquinários e o trabalho se tornou vantajoso, ou como se diz, mais produtivo, o preço das mercadorias baixa. Pelo contrário, quando a produção é difícil e se produzem menos mercadorias, o trabalho é menos produtivo, e o preço das mercadorias sobe.

Se a sociedade emprega, em média, muito trabalho para fabricar uma mercadoria, o preço desta última é elevado; se o trabalho foi menor o preço é baixo. A quantidade de trabalho social fornecida por uma técnica média (isto é, por máquinas e instrumentos que, sem serem os melhores, não são os piores) e empregada para a produção de uma mercadoria, determina o valor (ou o custo dessa mercadoria). Vemos, agora, que o preço é fixado pelo valor. Na realidade, o preço é, ora mais elevado, ora mais baixo que o valor, mas, para simplificar, podemos admitir que valor e preço são iguais.

Lembremo-nos, agora, do que dissemos a respeito do contrato dos operários: contratar é comprar uma mercadoria particular — a força de trabalho. Mas, uma vez que a força de trabalho é convertida em mercadoria, tudo o que se refere às mercadorias lhe é aplicável. Quando o capitalista contrata um operário, paga-lhe o preço ou, para simplificar, o valor da sua força de trabalho. Por que meio este valor é determinado? Vimos que, para todas as mercadorias ele é determinado pela quantidade de trabalho empregada em produzi-las. Assim também, no que diz respeito à força de trabalho.

Que se entende por produção da força de trabalho? A força de trabalho não se produz numa fábrica; não é nem tecido, nem graxa, nem máquina, o que se entende pela sua produção.

Basta observar a vida real no sistema capitalista para compreender do que se trata. Suponhamos que os operários tenham terminado seu trabalho. Estão muito cansados, não têm força, não podem trabalhar mais. Quase que se esgotou a sua força de trabalho. É preciso comer, descansar, dormir, refazer o organismo, e desta maneira, “reconstituir as forças”. Em seguida é que reaparece a possibilidade de trabalhar, reconstituindo-se a força de trabalho.

A alimentação, a roupa, o alojamento, etc. — em suma, a satisfação das necessidades do operário é que representa a produção da força do trabalho. É preciso, porém, juntar a isto elementos tais como as despesas de aprendizagem, em se tratando de operários qualificados.

Tudo o que a classe operária consome a fim de renovar a sua força de trabalho tem um valor; conseqüentemente o valor dos gêneros alimentícios, bem como os gastos com a formação profissional, eis o que constitui o valor da força de trabalho. Para mercadorias diferentes corresponde valor diferente. Assim, também, cada espécie de força de trabalho tem o seu valor; a força de trabalho de um tipógrafo é diferente da de um servente de pedreiro, e assim por diante.

Tratemos, de novo, da fábrica. O capitalista compra a matéria-prima, o combustível, as máquinas, o lubrificante e outras coisas indispensáveis; em seguida, ele compra a força do trabalho, “contrata operários”. Tudo isto, ele faz com dinheiro à vista. Começa a produção. Os operários trabalham, as máquinas rodam, consome-se o combustível, gasta-se o óleo, o edifício estraga-se, esgota-se a força de trabalho. Em compensação, da fábrica sai uma nova mercadoria. Essa mercadoria, como todas as mercadorias, tem um valor. Qual é o seu valor? Em primeiro lugar, a mercadoria absorveu o valor dos meios de produção que foram gastos para ela: a matéria-prima, o combustível consumido, o uso das máquinas, etc. Tudo isto faz, agora, parte do valor da mercadoria.

Em segundo lugar, entrou nela o trabalho dos operários. De trinta operários, cada um trabalhou trinta horas no seu fabrico. Isto faz um total de 900 horas de trabalho; portanto, o valor das matérias gastas (suponhamos, por exemplo, que este valor seja igual a 600 horas de trabalho) e do valor novo que os operários lhe ajuntaram com o seu trabalho (900 horas), o que quer dizer que ele será de 600 + 900 = 1.500 horas de trabalho.

Mas, quanto custa a mercadoria ao capitalista? Este pagou totalmente a matéria-prima, isto é, uma soma correspondente, quanto ao seu valor, a 600 horas de trabalho. E a força de trabalho? Ele, por acaso, pagou integralmente as 900 horas? Este é o nó da questão. Ele pagou, de acordo com o que supusemos, todo o valor da força de trabalho em razão dos dias de trabalho. Quando 30 operários trabalham trinta horas durante três dias, ou sejam, dez horas por dia, o fabricante paga a quantia necessária para a reconstituição da sua força de trabalho em razão destes três dias. Que quantia é esta? A resposta é simples: ela é muito inferior ao valor de 900 horas. Por que? Porque uma coisa é a quantidade de trabalho necessária ao sustento de minha força de trabalho, e outra coisa, muito diferente, é a quantidade de trabalho que posso fornecer.

Posso trabalhar dez horas por dia. E, para comer, vestir-me, etc., preciso, para um dia, de objetos de valor igual a cinco horas. Por conseguinte, posso trabalhar muito mais que o necessário para o sustento da minha força de trabalho. Dentro do nosso exemplo, admitamos que os operários só gastam, para alimentar-se, vestir-se, etc., durante três dias, produtos de um valor de 450 horas de trabalho, fornecendo um trabalho de 900 horas: ficam 450 horas para o capitalista, formando precisamente a fonte do seu lucro.

Na realidade, a mercadoria custa ao capitalista, como vimos 600 + 450 = 1.050 horas, ele a vende por um valor de 600 + 900 = 1.500 horas; as 450 horas são a mais-valia criada pela força de trabalho. Segue-se daí que os operários trabalham a metade do seu tempo (são cinco horas num dia de dez horas) para reconstituir o que eles gastam para si mesmos, e a outra metade é empregada por eles, inteiramente, para o capitalista.

Consideremos, agora, a sociedade inteira. Porque não é o que individualmente faz o fabricante ou o operário que nos interessa. O que nos interessa é o mecanismo desta máquina gigantesca que se chama sociedade capitalista. A classe capitalista faz trabalhar a classe operária, numericamente formidável. Em milhares de fábricas, nos poços das minas, nas florestas e nos campos, trabalham, como se fossem formigas, milhões de operários. O capitalista paga-lhes, a título de salário, o valor da força de trabalho, valor este que se destina à renovação desta mesma força de trabalho em favor dele, capitalista. A classe operária não recebe integralmente o produto do seu trabalho: ela cria a renda das classes superiores, cria a mais-valia. Esta mais-valia vai para o bolso dos patrões por milhares de canais. Uma parte é embolsada pelo próprio capitalista, é o seu lucro de empresário; outra parte é embolsada pelo proprietário e possuidor da terra; outra vai ter, sob a forma de impostos, às mãos do Estado Capitalista; e outra aos donos de lojas, mercearias, às igrejas, aos atores e aos palhaços, aos escritores burgueses, etc. À custa dessa mais-valia, vivem todos os parasitas chocados pela galinha de ouro da ordem social capitalista. Uma parte dessa mais-valia, é, por sua vez, utilizada pelos capitalistas. O seu capital cresce. Aumentam as empresas, contratam mais operários. Adquirem novas máquinas. Maior número de operários fornece-lhes uma mais-valia ainda maior. Cada vez mais vastas ficam as empresas capitalistas. Assim, a cada minuto, progride o capital, acumulando mais-valia. O capital, sugando a mais-valia dos trabalhadores, explorando-os, cresce continuamente.

O capital

Vemos agora, claramente, o que é o Capital. É, antes de tudo, um valor determinado, seja sob a forma de dinheiro, de máquinas, de matérias-primas, de edifícios, de fábricas, seja sob a forma de produtos fabricados. Mas, trata-se de um valor que serve para produzir um novo valor: a mais-valia. O capital é um valor que produz a mais-valia. A produção capitalista é a produção da mais-valia.

Na sociedade capitalista, as máquinas, os edifícios, representam um capital. Mas, são sempre capital? Não. Se existisse um sistema fraternal de produção para toda a sociedade, nem as máquinas nem as matérias-primas seriam capital, porque não serviriam para extrair lucro em benefício de um punhado de ricos. Por isso, as máquinas, por exemplo, só se transformam em capital na medida em que são a propriedade privada da classe dos capitalistas e servem para explorar o trabalho assalariado, para produzir a mais-valia.

Não tem importância a forma desse valor; tanto ele pode consistir em pequenas moedas de ouro, como em papel-moeda e é com ele que o capitalista compra os meios de produção e a força de trabalho; esse valor pode, também, assumir a forma de máquinas, com as quais trabalham os operários, ou de matérias-primas, que eles convertem em mercadorias ou ainda de produtos manufaturados que serão vendidos mais tarde. Desde o momento em que esse valor serve para a produção da mais-valia, trata-se do capital.

De ordinário, o capital só deixa uma forma para tomar outra. Vejamos como se opera esta transformação:

I — O capitalista ainda não comprou força de trabalho, nem meios de produção. Mas, anseia por contratar operários, procurar máquinas, adquirir matérias-primas, carvão em quantidade. Nesse momento, ele nada tem, a não ser o dinheiro. O capital apresenta-se aí sob a forma de moeda.

II — Com esse dinheiro, o capitalista vai ao mercado (está visto que não o faz pessoalmente, porque tem para isso o telefone, o telégrafo, etc.). Uma vez aí, dá-se a compra dos meios de produção e da força de trabalho. O capitalista volta à fábrica sem dinheiro, mas com operários, máquinas, matérias-primas, combustível. Todas essas coisas, agora, já não são mercadorias. Deixaram de ser mercadorias, pelo fato de não se prestarem à venda. O dinheiro foi transformado em meios de produção e em força de trabalho, perdendo o seu aspecto monetário. O capital apresenta-se agora, sob a forma de capital industrial.

Em seguida, começa o trabalho. As máquinas entram em ação, as rodas giram, as alavancas funcionam, os operários e as operárias suam em bica, as máquinas se gastam, as matérias-primas diminuem, a força de trabalho se esgota.

III — Então, todas essas matérias-primas, o uso das máquinas, a força de trabalho em ação, transformam-se, pouco a pouco, em pilhas de mercadorias. Desta vez, o capital deixa o aspecto material de instrumento de fabricação e aparece como uma pilha de mercadorias. É o capital sob sua forma comercial. Mas, não só mudou de aspecto, como também aumentou de valor, porque, no curso da produção, foi acrescido da mais-valia.

IV — Não obstante, o capitalista não faz produzir mercadorias para seu uso pessoal, mas sim para o mercado, para a venda. O que acumulou no seu depósito tem que ser vendido. A princípio, o capitalista ia ao mercado na qualidade de comprador; agora, deve ir como vendedor. No princípio, tinha o dinheiro em mãos e queria adquirir mercadorias (os meios de produção); agora ele tem nas mãos as mercadorias e quer obter dinheiro. Quando a mercadoria é vendida, o capital passa novamente de sua forma comercial para sua forma monetária. Mas, a quantidade de dinheiro recebida pelo capitalista não é a que ele havia dado no começo, porque ela cresceu com o excedente da mais-valia.

Mas, ainda não terminou a circulação do capital. O capital aumentado é novamente posto em movimento e adquire uma quantidade ainda maior de mais-valia. Essa mais-valia junta-se em parte ao capital e começa um novo ciclo, e assim consecutivamente. O capital, como se fosse uma bola de neve, rola sem cessar, e, em cada volta, uma quantidade crescente de mais-valia se lhe ajunta. Isto quer dizer que a produção capitalista cresce e alarga-se.

Eis como o capital tira a mais-valia da classe operária e vai se infiltrando em toda a parte. O seu crescimento rápido se explica pelas suas qualidades particulares. É verdade que a exploração de uma classe por outra já existia antes. Mas, tomemos como exemplo um proprietário agrícola no tempo da servidão, ou um senhor de escravos na antiguidade. Eles oprimiam os servos ou escravos. Tudo o que estes produziam, era comido pelos senhores, e bebido por eles. A produção das mercadorias era muito fraca e não se podia vender em parte alguma. Se os proprietários ou os senhores tivessem querido obrigar os servos ou os escravos à produção de montanhas de pão, de carne, de peixe, etc., tudo isto apodreceria. A produção limitava-se, então, a satisfazer as necessidades do proprietário e da sua comitiva. O mesmo não se dá no sistema capitalista. Nele, não se produz para a satisfação das necessidades, e sim para o lucro. Produz-se a mercadoria para vende-la, realizar ganhos, acumular lucro. Quanto maior for o lucro, tanto melhor. Daí essa corrida insensata da classe capitalista em busca do lucro. Esta sede de lucros não tem limites. Ela é o eixo, o motor principal da produção capitalista.

A dependência do proletariado,

o exército da reserva, o trabalho das mulheres e das crianças

Massas cada vez maiores da população se transformam, sob a ordem social capitalista, em operários assalariados. Artesãos arruinados, trabalhadores a domicílio, camponeses, comerciantes, capitalistas médios em falência, em suma, todos os que foram jogados à margem ou encurralados pelo grande capital caem nas fileiras do proletariado. À medida que as riquezas se concentram nas mãos de um punhado de capitalistas, o povo se transforma cada vez mais em escravo assalariado dos primeiros.

Graças à ruína contínua das camadas das classes médias há sempre mais operários do que precisa o capital. Por isso é que o operário está acorrentado ao capital. Ele é obrigado a trabalhar para o capitalista. Se não o quer, há outros para lhe tomarem o lugar.

Mas, essa dependência não se consolida somente pela ruína de novas camadas da população. O domínio do capital sobre a classe operária cresce ainda com o fato de serem atirados continuamente à rua, pelo capital, os operários de que ele já não precisa, constituindo-se, assim, uma reserva de força de trabalho. Como se dá isto? Já vimos que cada fabricante procura reduzir o preço líquido das mercadorias. Para isto, ele introduz, cada vez mais, novas máquinas. Mas, a máquina, em regra geral, substitui o operário, torna inútil uma parte dos operários. Uma nova máquina numa fábrica quer dizer que uma parte dos operários é despedida e fica sem trabalho. Mas, como novas máquinas são introduzidas continuamente num ramo da indústria ou noutro, é claro que no sistema capitalista há sempre, fatalmente, operários sem trabalho. Isto porque o capitalista não se preocupa em dar trabalho a todos os operários, nem, tampouco, em fornecer mercadorias a todos, mas em obter o maior lucro possível. Naturalmente, ele despedirá os operários que já não são capazes de lhe dar o mesmo lucro que antes.

E, efetivamente, nas grandes cidades de todos os países capitalistas, sempre vemos grande número de desocupados. Nelas se acotovelam operários chineses ou japoneses, antigos camponeses arruinados, vindos do fim do mundo para procurar trabalho, antigos lojistas ou pequenos fabricantes; mas, aí encontramos também metalúrgicos, tipógrafos, tecelões, que, havendo durante longo tempo trabalhado nas fábricas, foram delas expulsos pelas novas máquinas. Tomados em conjunto, formam uma reserva de forças de trabalho para o capital, ou, como disse K. Marx, o exército industrial de reserva. A existência desse exército, a permanência da falta de trabalho, permite aos capitalistas aumentar a dependência e a opressão da classe operária. O capital, graças às máquinas, consegue subtrair de uma parte dos operários mais ouro do que antes; quanto aos outros, ficam na rua. Mas, mesmo na rua, eles servem aos capitalistas de chicote para estimular os que trabalham.

O exército industrial de reserva oferece casos de embrutecimento completo, de miséria, de fome, de grande mortalidade, e até mesmo de criminalidade. Aqueles que, durante anos, não puderam encontrar trabalho, tornando-se gradativamente bêbados, vagabundos, mendigos, etc.

Nas grandes cidades: em Londres, Nova lorque, Hamburgo, Berlim, Paris, existem bairros inteiros habitados pelos sem trabalho dessa espécie. O mercado de Chitrov, em Moscou, pode servir de exemplo. Em lugar do proletariado, forma-se uma nova camada desabituada ao trabalho. Essa camada da sociedade capitalista chama-se, em alemão Lumpenproletariel (lumpenproletariado): proletariado maltrapilho.

A introdução das máquinas fez surgir, igualmente, o trabalho das mulheres e das crianças, trabalho mais econômico e, portanto, mais vantajoso para o capitalismo. Antes das máquinas, era necessária certa habilidade manual, algumas vezes, era preciso fazer uma longa aprendizagem. Agora, certas máquinas podem ser manobradas até por crianças, que só têm de levantar o braço ou mover o pé até que se cansem. Eis porque as máquinas difundiram o trabalho das mulheres e das crianças. (...)

Assim, na sociedade capitalista, à medida que se inventam novas máquinas, mais aperfeiçoadas, e se constroem fábricas cada vez maiores e cresce a produtividade, aumentam paralelamente a pressão do capital, a miséria e os sofrimentos do exército industrial de reserva, a dependência da classe operária para com seus exploradores.

Se não existisse a propriedade e se tudo pertencesse a todos, o quadro seria muito diferente. Os homens reduziriam, muito simplesmente, seu dia de trabalho, poupariam suas forças, diminuiriam seu sofrimento, pensariam no repouso. Mas, quando o capitalista introduz as máquinas, só pensa no lucro; não reduz o dia de trabalho, porque perderia com isto. No domínio do capital, a máquina não liberta o homem, torna-o escravo.

Com o desenvolvimento do capitalismo, uma parte cada vez maior do capital é destinada às máquinas, aparelhos, construções de toda a sorte, etc; pelo contrário, uma parte cada vez menor vai para o salário dos operários. (...) E isto significa que a procura da mão-de-obra aumenta menos rapidamente do que o número das pessoas arruinadas, convertidas em proletários. Quanto mais se desenvolve a técnica, sob o capitalismo, mais aumenta a pressão do capital sobre a classe operária, porque se toma cada vez mais difícil encontrar trabalho.

A anarquia da produção, a concorrência e as crises

A miséria da classe operária cresce na medida do desenvolvimento da técnica que, sob o capitalismo, em lugar de ser útil a todos, traz lucro para o Capital, mas conduz à falta de trabalho e à ruína de muitos operários. E esta miséria aumenta ainda mais por outras razões.

Vimos, mais acima, que a sociedade capitalista está muito mal construída. Nela domina a propriedade privada, sem nenhum plano geral. Cada fabricante dirige sua empresa independentemente dos outros. Ele, pelo contrário, disputa o comprador aos outros: está em “concorrência” com eles.

Essa luta aumenta ou diminui com o desenvolvimento do capitalismo? À primeira vista, pode parecer que diminui. Com efeito, o número dos capitalistas diminui sem cessar; os grandes devoram os pequenos; outrora, dezenas de milhares de proprietários, de empresas lutavam entre si, a concorrência era feroz; hoje, poder-se-ia crer que os rivais, sendo muito menos numerosos, a luta deveria ser menos encarniçada. Na realidade, nada disto se dá. O contrário, justamente, é que é verdadeiro. É verdade que os rivais são menos numerosos, mas cada um deles tomou-se maior e mais poderoso. E a luta não diminuiu, mas aumentou; não acalmou, mas encarniçou-se ainda mais. Basta que em cada país não exista mais do que um punhado de capitalistas para que entre estes países capitalistas rebente a luta. Chegamos finalmente a este ponto. A rivalidade se dá atualmente, entre enormes associações de capitalistas, entre os Estados. E não lutam apenas pela baixa de preços, mas sim pela força das armas. A concorrência, à medida que se desenvolve o capitalismo, só faz diminuir o número dos rivais, mas torna-se sempre mais encarniçada e mais destruidora.

É necessário frisar ainda um sintoma: as crises. Que são essas crises? Eis o que são: um belo dia, percebe-se que tais mercadorias foram produzidas em quantidade excessiva. Os preços baixam, porque não há escoamento. Os armazéns ficam abarrotados de produtos que não podem ser vendidos: não há compradores para eles; e, enquanto isso, há muitos operários famintos, recebendo salários miseráveis e podendo comprar menos do que anteriormente. Então, é a miséria. Num ramo de produção, primeiro são as médias e as pequenas empresas que abrem falência e fecham as portas; depois, chega a vez das grandes. Mas, cada indústria depende de uma outra, todas são clientes umas das outras. Por exemplo, as empresas de confecção compram o pano aos grandes retalhistas e estes às fábricas de tecidos. Falidas as empresas de confecção, e como não há mais ninguém para comprar aos grandes fabricantes de tecidos, a indústria têxtil fica em perigo. Em toda parte começam a ser fechadas fábricas e oficinas; dezenas de milhares de operários são atirados à rua, a falta de trabalho aumenta enormemente, torna-se pior a vida dos operários. E, no entanto, há grande quantidade de mercadorias e o chão dos armazéns ameaça ceder sob seu peso. Deu-se isto, quase sempre, antes da guerra[4]; a indústria prosperava, os negócios dos fabricantes caminhavam admiravelmente; de repente, era a falência, a ruína, a falta de trabalho, a estagnação dos negócios; depois, a situação melhorava, os negócios voltavam a ser brilhantes; depois de novo a falência, e assim consecutivamente.

Como explicar esta situação insensata em que os homens, entre as riquezas e o supérfluo, tomam-se mendigos?

A resposta é simples. Já vimos, que, na sociedade capitalista, reina a desordem, a anarquia na produção. Cada patrão produz por sua conta, correndo o risco e os perigos. Cedo ou tarde, com tal modo de produção, há excesso de mercadorias produzidas (superprodução). Quando se fabricavam produtos e não mercadorias, isto é, quando a produção não se destinava ao mercado, a superprodução não era perigosa. Mas, a coisa muda de figura na produção de mercadorias. Cada fabricante, para comprar as matérias necessárias para a sua fabricação ulterior, deve vender primeiro as suas próprias mercadorias.

Então se declara uma crise geral.

Essas crises são muito destruidoras. Destrói-se grande quantidade de mercadorias. Os vestígios da pequena indústria são varridos por uma vassoura de ferro. Mesmo as grandes empresas não podem resistir e parte delas desaparecem.

Certas fábricas são fechadas completamente, outras reduzem a produção, não trabalham todos os dias da semana; outras, enfim, são fechadas momentaneamente. O número dos sem-trabalho aumenta. Cresce o exército industrial de reserva, aumentando a miséria e a opressão da classe operária. Durante a crise, a condição da classe operária, que já era má, torna-se ainda pior.



[1] Nicolai Buckarin (1888-1938) – membro do Comitê Central do Partido Bolchevique, editor do jornal Pravda. Aliou-se a Stalin após a morte de Lenin. Em 1938 foi executado nos Processos de Moscou.

[2] Eugene Preobrazhenski (1886-1937) – membro do Comitê Central do Partido Bolchevique russo até 1921., depois membro da Oposição de Esquerda, dirigida por Trotsky. Um dos principais economistas do partido. Em 1937 foi fuzilado a mando de Stalin, após se recusar a “confessar” os falsos crimes de que foi acusado nos Processos de Moscou

[3] Hoje, pode-se dizer o mesmo em relação à fabricação de armas e drogas. No período em que o texto foi escrito, o governo bolchevique travava uma dura batalha contra o alcoolismo na sociedade russa.


[4] Refere-se à Primeira Guerra Mundial, de 1914 a 1918.

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